Era uma vez Mundugaz: Narrativas da figura do rei Ngungunhane em Moçambique e em Portugal (1890-2024)

Abstract

Este trabalho analisa as diversas narrativas sobre Ngungunhane, o último rei de Gaza (Moçambique), fazendo uso de uma abordagem meta-biográfica e de métodos de análise de conteúdo para interpretar as fontes textuais, orais e iconográficas. Respondendo à pergunta cardinal da investigação - Por que vias uma mesma personagem histórica pode encarnar valores sociais diversos e gerar leituras opostas? – explora-se a forma como a imagem de Ngungunhane foi moldada, ao longo de 130 anos, em Moçambique e Portugal em diferentes contextos culturais e políticos. Desde a “Gungunhanomania”, a superexposição mediática do aprisionamento (1895-96), à elevação a nemesis de Mouzinho de Albuquerque no Estado Novo, à reconfiguração de Ngungunhane enquanto herói anticolonial, após a independência de Moçambique (1975). As representações na atualidade revelam-se fragmentadas, embora ricas em significados. Em Moçambique, regista-se uma mudança entre o topos da resistência de Gaza celebrado no protonacionalismo e as críticas da literatura contemporânea à figura idealizada na historiografia oficial, refletindo um dualismo persistente na tradição oral do Sul de Moçambique. As narrativas portuguesas oscilam entre duas interpretações opostas do passado, uma adequação atualizada ao velho luso-tropicalismo e o impulso a uma descolonização do espírito. Desta forma, o presente caso-estudo permite vislumbrar mecanismos de construção e perpetuação da memória coletiva e dos heróis nacionais. Em suma, as narrativas do “Leão de Gaza” ilustram a complexidade desta personagem histórica que bem simboliza a relação entre Moçambique e Portugal, quer no quadro do império colonial, quer no âmbito da relação póscolonial iniciada em 1975.

This work analyzes the various narratives about Ngungunhane, the last king of Gaza (Mozambique), using a meta-biographical approach and content analysis methods to interpret textual, oral, and iconographic sources. Addressing the central research question - Through what means can the same historical figure embody diverse social values and generate opposing interpretations? - the study explores how Ngungunhane's image has been shaped over 130 years in Mozambique and Portugal within different cultural and political contexts. From the “Gungunhanomania,” the media overexcitement surrounding his capture (1895-96), to his elevation as the nemesis of Mouzinho de Albuquerque during the Estado Novo, and hisreconfiguration as an anti-colonial hero following Mozambique's independence (1975). Contemporary representations are fragmented yet rich in meanings. In Mozambique, there has been a shift from the topos of Gaza’s resistance celebrated in protonationalism to contemporary literature's criticism of the idealized figure in official rhetoric, reflecting a persistent dualism in the oral tradition of southern Mozambique. Conversely, Portuguese narratives oscillate between two opposing interpretations of the past: an amended adaptation of the old Luso-tropicalism and the drive towards a decolonization of the spirit. Thus, this case study sheds light on the mechanisms of constructing and perpetuating collective memory and national heroes. In sum, the narratives of the "Lion of Gaza" illustrate the complexity of this historical figure, who symbolically represents the relationship between Mozambique and Portugal, both within the context of the colonial empire and in the post-colonial relationship that began in 1975.